Boa noite,
às vezes os comentários fazem-nos pensar, dão-nos força e outras vezes deixam-nos de rastos...
Hoje aconteceu-me ficar de rastos.. Cheguei bem disposta a casa e confesso que fiquei estarrecida com um comentário. Acontece! A pessoa não fez por mal, quis mostrar-me como com força de vontade e exercício conseguiu atingir o peso ideal para a sua altura. Não vejo maldade no comentário, não sinto que essa pessoa me está atacar. Mas o comentário coloca questões difíceis de ignorar.
Antes de mais quero explicar uma coisa. Comer compulsivamente é uma doença! É a doença mais comum do foro das desordens alimentares. A bulimia toda a gente conhece e a anorexia também... consegue-se esconder até chegar a um ponto em que a saúde se começa a deterior de tal forma que não se pode negar mais. E vamos lá ver... custa mais ver uma pessoa com 35 kg que outra com 120 kg. Visualmente tem um impacto maior os ossos a saírem, a falta de cabelo, os dentes podres, as gengivas descarnadas que o pneu... Porque a diferença está fundamentalmente aí. Um doente com bulimia e anorexia esconde o que faz e passa até certo ponto despercebido e uma pessoa que sofre de compulsão alimentar é forçosamente gorda... (mas... nem todos os gordos sofrem de compulsão alimentar...)
A diferença de comer ás vezes um bocadinho de mais e comer compulsivamente é abismal. As pessoas que comem compulsivamente têm um comportamento típico de um dependente. Pensam em comida, planeiam comprar comida, escondê-la, escolhem a altura certa, o local para a comer e depois escondem todos os indícios.
E mesmo quando falo no blog que comi compulsivamente eu nem chego a dizer realmente tudo aquilo que comi... Quando digo que comi rebuçados, bolo, gomas, gelado, pão com manteiga falo muito genericamente mas aposto que quem tem o mesmo problema que eu sabe bem o que isso significa.
Isso significa que fui a 1, a 2 ou mesmo a 3 supermercados e no meio de todas as compras que fiz (que servem somente para disfarçar aquilo que eu queria mesmo comprar) comprei horrores de comida de "merda". Na minha última viagem (na semana passada) ao supermercado com o intuito de me encher/encharcar/enfardar de comida, comprei:
1 embalagem de rebuçados, 1 bolo de 450 gr, 1 gelado de 1 kg, 1 embalagem de 12 pasteis de feijão, 3 ou mais chocolates, pão caseiro, 1 embalagem de manteiga milhafre, 1 embalagem de torresmos ás fatias e 1 pizza de 4 queijos. Fui para casa, arrumei as outras compras e distribui essa comida numa mesa de centro, na sala. Sentei-me no sofá e liguei a tv. Durante 2 horas comi tudo o que estava ali... e o pouco que sobrou, mesmo o resto da embalagem de manteiga, 1/3 do bolo, 1/4 do gelado foi para o caixote do lixo... A única coisa que guardei foi o pão... para o pequeno almoço do meu marido.
Quem percebe do que estou a falar também já percebeu que aquilo que comi rondou as 7 000 calorias.
7 000 calorias? simmmm
Comer compulsivamente é isso. Não é comer 1 bolo quando se sabe que não se pode... ceder a uma tentação é um bolo. A dependência é não conseguir parar. é chorar porque nos dói o corpo enquanto comemos e a dor que sentimos interiormente ser superior a isso e não conseguir deixar de sofrer por mais que comemos e comer e sentir dor física e não parar.
E dói, dói, dói e dói... e por vezes já choro tanto, e a dor não para, que a mim mesma me dou chapadas na cara, até a sentir dormente! E aí lembro-me do meu pai. Ele batia-me assim. E é um choque e esse choque é que muitas vezes me faz parar de comer.
A tua intenção não era magoar-me. Não senti isso no teu comentário. O teu comentário fez-me lembrar algumas pessoas entre as muito poucas pessoas a quem tive a coragem de falar sobre isto.
Eu sempre fui gorda, a minha mãe pôs-me a dieta desde os 5 anos. Comia peixe ou carne, cozida ou grelhada, temperada com limão e pouco sal acompanhada de alface não temperada... sopa, sem ou quase nenhuma batata. A massa e o arroz estavam-me quase vedados.
Dos 10 aos 12 anos andei no ciclo ao pé da casa da minha avó e ia almoçar ás quartas feiras á casa dela. O almoço era sempre sopa de cotovelos a desfazerem-se com um pouco de carne de vaca cozida e ervilhas. Simplesmente intragável! A única razão porque lá ia era que a minha irmã (que foi criada pelos meus avós) ás vezes deixava-me fazer lá uma sandes com TULICREME para eu levar para o lanche.
Passei lá alguns fins de semana e aí comi pela primeira vez leite com chocolate e pão com manteiga de vaca... na minha casa só havia Planta...
Tive muito falta de amor e senti muita revolta. Encontrei na comida um escape ainda que momentâneo. E por isso tornei-me perita em arranjar e esconder comida.
Ao longo destes 38 anos já me aconteceu muita coisa... muita coisa má. É fácil de falar da violência física por parte do meu pai, dos abusos verbais ao longo da minha infância, adolescência, do nascimento da minha filha com Trissomia 21. Isso foram todos acontecimentos chave e traumáticos. Mas muitas outras coisas ficam por dizer... e ás vezes as coisas pequenas que nos dizem, as atitudes que tomam connosco, o descaso, o estarmos a falar e verificarmos que aquilo que falamos não interessa nada/nós não interessamos nada a outra pessoa...
Mata um pouquinho cada dia. Começarmos a duvidar do nosso valor é uma consequência previsível. E a compulsão alimentar que esteve sempre lá, essa dependência que conseguimos controlar sendo "cheiinha" (optando por intercalar momentos de compulsão com outros de fome para assim manter o peso estável) começa a tomar conta de nós. A comida torna-se efectivamente a nossa droga.
E dos 58/60 kg (excesso de peso) que tinha, passei a 90 kg (obesidade mórbida grau 2, imc 41). Considerando que tenho 1,47 aldrabados no BI (usei umas cunhas dentro dos sapatos... devo ter 1,46) não há 10 kg que resolvam o problema... nem 20, nem mesmo os 30 kg que tenciono perder. O meu peso "ideal", com um imc de 22 é 46 kg...
De 90 kg a 46 kg são 44 kg... é possível não perder sistematicamente a força de vontade? Não acredito... e para quem tem uma doença como a minha? IMPOSSÍVEL
Quem me Lê desde há mesmo muito tempo sabe que no Natal eu tinha 64.7 kg... mas em junho já tinha 73... foi há pouco mais de 4 meses que novamente comecei a perder peso...
A compulsão alimentar tem cura... mas implica custos exorbitantes... e é preciso encontrar um conjunto de médicos (psicólogos, endocrinologistas e nutricionistas) que reconheçam a compulsão alimentar como uma doença e aceitem trabalhar interdisciplinarmente.
E os médicos... acham que são Deus. Só eles sabem... só eles são detentores da verdade e nesse aspecto assemelham-se a gente normal... a gente que não tem culpa mas é ignorante.
A ignorância ultrapassa-se. Basta não ser-se estúpido. Aceitar ouvir o outro. Não é ouvir. É ESCUTAR.
Mas tem de vir da consciência de saber perceber a sua própria ignorância e aceitá-la. E aí MUDAR...
Este é capaz de ser o post mais sincero que fiz. Está cheio de recordações, de momentos que me marcaram e aí é mesmo marcas. Marcas que se fossem físicas eras de cortes de faca, era sangue a sair e eu a olhar...
Vou parar agora. podia escrever muito mais... podia mas é muita dor e receio não ter força amanhã para me controlar. Amanhã vou falar com a professora de ensino especial da Raquel... preciso de toda a força interior para mais uma batalha... a minha filha tem de aprender a ler, a escrever, a contar... ela precisa de uma mãe forte... e eu vou sê-lo. Por ela, por mim, pela família que é a minha vida. Estas 4 pessoas amam-me e eu não posso deitar tudo a perder... é necessário que eu também me ame. tenho de me cuidar.
Um abraço,
Sofia